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RESENHA | Chernobyl (2019)

  • Foto do escritor: Habeas Data
    Habeas Data
  • 11 de jun. de 2019
  • 6 min de leitura


Por João Krauss


No meio audiovisual, há poucas dúvidas da extrema capacidade da HBO de realizar obras excepcionais. Apesar da decepção que muitos espectadores possam ter tido com a emissora após o decepcionante fim de Game of Thrones, ela ainda deve ser louvada, e Chernobyl é a mais nova prova disso. Atualmente no topo da lista das melhores séries de todos os tempos no IMDb - superando Breaking Bad e a supracitada Game of Thrones -, o drama histórico lança um olhar único no maior desastre nuclear da história em 5 episódios que, diferentemente de radioisótopos ao emitir raios eletromagnéticos, não decaem em momento algum.


Existem vantagens e desvantagens em desenvolver uma trama no formato de minissérie. O número pequeno de episódios impede que o superalargamento de uma narrativa cause distorções e queda de qualidade, decorrentes da falta de objetividade e da necessidade de esticar a trama. Por outro lado, pode, por ventura, impedir que uma história mal iniciada se recupere graças ao tempo limitado, que, obviamente também pode prejudicar o desenvolvimento e a coesão narrativa. Assim, é nítido que o formato é ideal para projetos que saibam, precisamente, o que querem dizer, tendo seu objeto bem delimitado e sem pretensões de posteriores alargamentos. É por conta desses fatores que, usualmente, tramas que buscam tratar de um evento determinado da história escolhem - e sucedem na escolha - o formato de poucos episódios para sua exibição. Chernobyl é um desses casos e, mais que isso, talvez seja o melhor.


Desde o primeiro episódio, fica bem explícito que há uma grande ambição no tratamento do objeto. A minissérie não quer apenas realizar uma narração dos eventos principais desse momento fundamental pra história contemporânea, embora essa proposta já fosse ser de grande qualidade visto o primor técnico que a série possui. Mais que isso, no entanto, Chernobyl busca apresentar uma variedade de núcleos envolvidos no acidente e na sua repercussão, ao mesmo tempo que estabelece uma tese, de forma extremamente necessária e crítica, sobre poder e verdade, e como ambos fatores têm papel predominante em toda essa história e como a sua má conjunção pode resultar em consequências práticas desastrosas.


O interessante é que essa tese só pôde ser bem representada, como foi, graças a um dos aspectos mais positivos da produção: o seu realismo. Quando digo realismo, não me refiro apenas ao apego aos fatos como de fato ocorreram - e a série tem sido extremamente elogiada por essa apuração histórica -, mas um elogio ao trabalho excepcional da direção que não falha em manter toda a execução em um tom verdadeiro e pé no chão. Pelo contrário, toda a realização é excepcionalmente orgânica, fazendo com que as cenas sejam extremamente críveis e dotadas de uma autenticidade que são determinantes para elevar esse drama histórico a um patamar superior.


Ademais, não se deve economizar nos elogios ao diretor Johan Renck, que, embora não seja exatamente um novato, não havia tido muitas grandes oportunidades de mostrar sua competência - não que ele tenha falhado ao dirigir os videoclipes Blackstar e Lazarus, do legendário David Bowie. A criação de atmosfera é simplesmente excepcional, e sucede completamente na criação de tensão e apreensão em momentos determinantes da trama, elevando a experiência de assistir à série e criando inveja em muitos diretores de terror e suspense. Desde os momentos claustrofóbicos vividos dentro da usina no primeiro episódio ao terror de uma expedição heroica por águas radioativas, passando pela tensão pairante em reuniões políticas, o drama de um romance arruinado pelo acidente e o conflito existente em um jovem soldado, o fato é que a direção é um dos principais pontos positivos da série, sucedendo em gerar envolvimento emocional em diferentes e diversos níveis.


É em conjunto com a elogiada direção que o roteiro é capaz de apresentar diversos núcleos que enriquecem em grande escala o lado humano da trama, ensinando ao espectador que, nessa história, muitos são os heróis. Curioso como, embora breves em comparação à duração total, esses blocos ainda assim não sofrem perda de qualidade pelo tempo de tela limitado – alguns aparecem em apenas um episódio - e, muitas vezes, pelo contrário, são verdadeiros destaques nos episódios. O melhor exemplo disso talvez seja a participação dos mineiros no terceiro episódio, que trazem um muito bem situado caráter cômico - em um sentido irônico e bastante ácido - em um dos melhores momentos de toda a minissérie, no qual eles são convocados para trabalhar em Chernobyl e demonstram sua aceitação de uma forma memorável. De mesma sorte é o drama dos soldados responsáveis por matar os animais contaminados pela radiação, que traz ao episódio 4 outra demonstração interessante de como o desastre afetou, indiretamente e de formas diversas, a vida de incontáveis pessoas.



Apesar dessas positivas descentralizações da história, a trama é conduzida pelas ações de três protagonistas. Temos, então, o cientista Valery Legasov, determinado a todo custo a remediar os desastrosos efeitos do acidente; o político Boris Shcherbina, que, inicialmente insensível por sua função estatal, logo percebe a gravidade da situação; e Ulana Khomyuk, uma cientista obcecada em descobrir a verdade por trás do acidente, e criada especialmente para a série, sendo uma amálgama de dezenas de cientistas que cumpriram esse papel na vida real. Primeiramente, é essencial deixar claro que os três personagens são levados à vida de forma excepcional por seus atores – respectivamente, Jared Harris, Stellan Skarsgård e Emily Watson. O experiente trio é facilmente um dos pontos mais fortes da minissérie e deve esperar conseguir, ao menos, muitas indicações na vindoura temporada de premiações. As relações do trio entre si não apenas contribuem com o desenvolvimento humano, mas também são fundamentais para expor as controvérsias que rodeiam o tratamento do caso. Enquanto os cientistas reforçam a importância da verdade, o político é um constante lembrete das questões burocráticas e políticas que dificultam e impedem a procura desta, visto que toda a situação decorre em um estado extremamente centralizado e controlador, que, por sua vez, está inserido em um contexto geopolítico bem específico.



A questão do poder, como mencionado anteriormente, é um dos pontos fundamentais de Chernobyl. Não seria exagero dizer que um dos principais objetivos da produção é, na verdade, demonstrar quão perigosa pode ser a concentração dos ditames da verdade nas mãos de uma figura estatal centralizada e autoritária. Estamos inseridos na União Soviética em seus últimos anos de existência, e isso jamais é tratado como simples plano de fundo, o que torna a obra extremamente relevante historicamente. A atuação política e militar – aqui muito bem representadas pelas cenas situadas no Kremlin e pela atuação da KGB, mas longe de ser exclusivamente por elas – no sentido de manter um regime através do controle e manipulação de informações cumprem o papel de algo como um antagonista pairante, sendo a base à qual a crítica sustenta a tese da produção. A pátria é constantemente referida como uma entidade superior e inabalável, e a todo momento fica claro que qualquer verdade que possa prejudicá-la é uma verdade perigosa de ser dita. Embora presente em todo o decorrer da minissérie, essa questão é o ponto central do último episódio, no qual o personagem de Jared Harris deve superar um terrível dilema, optando entre a mentira e a possível morte. O discurso que tanto inicia quanto encerra a série só faz elevar essa camada, e deixa claro o posicionamento adotado pela produção.


Também contribuindo para o altíssimo nível de realismo e veracidade, é notável como a série não tem receio de introduzir explicações técnicas e científicas quando necessárias, garantindo que o espectador compreenda o máximo possível dos diferentes aspectos envolvidos no incidente. Mais curioso ainda é como tais explicações são apresentadas de formas didáticas e de modo que as cenas aonde ocorram não decaiam para um expositivismo cansativo ou subestimador. No mesmo sentido se realiza a ambientação histórica, que, como já dito, é de extrema qualidade e precisão, ainda que a expressão “Guerra Fria” não seja mencionada sequer uma vez. Ademais, é notável que, em diversos momentos, são feitas criticas e pontuações ácidas acerca do modelo soviético contemporâneo da época, assim como sua formação. Se essas críticas são sempre justas ou corretas é discutível, mas, ainda assim, são geralmente válidas e bem inseridas nos contextos em que ocorrem, não surgindo gratuitamente como se poderia, com certa razão, esperar de uma produção americana.


Como a cereja do bolo em relação à ambientação, temos uma parte técnica absolutamente incrível. Elogiado mundialmente, é louvável o trabalho da direção de arte na reprodução não só da usina de Chernobyl, mas também na representação das localidades e da sociedade soviética da época em aspectos gerais. Contribuindo para esse mérito, temos o figurino e a maquiagem, essa última alcançando níveis surpreendentemente assustadores na criação dos efeitos da radiação. É um trabalho excepcional capaz de deixar até mesmo os mais acostumados com o gore chocados. Todos esses fatores, somados à extraordinária criação de atmosfera resultada do ótimo conjunto fotografia e trilha sonora – que, vale dizer, foi baseada nos sons reais presentes em uma usina nuclear – consolidam a minissérie da HBO como um caso primoroso de harmonização com o período histórico retratado e a tornam um clássico instantâneo.


Alcançando resultados surpreendentemente excelentes tanto com crítica quanto com o público, a minissérie com certeza marcará presença na vindoura temporada de premiações, e rapidamente se consolida como um marco importantíssimo para o sub-gênero drama histórico. Chernobyl é uma produção de uma qualidade excepcional, que contém camadas e discussões importantíssimas, além de uma abordagem realista e dificilmente superável desse evento histórico que, de acordo com palavras de Mikhail Gorbachev, foi talvez a verdadeira causa do colapso da tão controversa União Soviética.


 
 
 

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