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Professores da UFRJ e da UCS debatem a MP 979 à luz dos arts. 206 e 207 da Constituição Federal

  • Foto do escritor: Habeas Data
    Habeas Data
  • 27 de jun. de 2020
  • 6 min de leitura



A professora de Direito Constitucional e Administrativo da UFRJ, Carolina Cyrillo, e o professor da UCS, Luiz Fernando Castilhos Silveira, realizaram uma importante e necessária discussão sobre a MP 979 à luz da gestão democrática e da autonomia universitária previstas nos artigos 206 e 207 da Constituição Federal.


Nesses momentos em que a anti ciência vem ganhando uma triste relevância em nosso País, nada melhor do que a produção científica universitária para destrinchar os objetivos reais do obscurantismo.


Confira o artigo abaixo:


Autonomia universitária na CF: em momento de emergência, soluções constitucionais


Art. 207 da CF é, justamente, para limitar a máxima autoritária de que para ‘situações emergências, respostas jurídicas emergenciais’


No dia 10 de junho de 2020, foi publicada a medida provisória n. 979 (MP 979), que dispõe sobre a designação de dirigentes pro tempore para as instituições federais de ensino durante o período da pandemia da covid-19, bem como determina que não haverá processo de consulta à comunidade, escolar ou acadêmica, ou formação de lista tríplice para a escolha de dirigentes das instituições federais de ensino durante o período da emergência de saúde pública, de importância internacional decorrente da pandemia da covid-19.


Em uma primeira leitura, parece que se está diante da máxima “para situações emergenciais, medidas emergenciais”. Entretanto, o que está em jogo na medida provisória não é a proteção da Universidade, mas uma desculpa circunstancial para levar adiante uma agenda previamente orquestrada, de violação da gestão democrática e autonomia universitária previstas nos artigos 206 e 207 da Constituição Federal, como pauta política do governo de ocasião[1].


A autonomia universitária está estabelecida na Constituição de 1988 no art. 207, e tem por objetivo defender as universidades, públicas e privadas, da intervenção dos governos em suas questões internas. O texto constitucional define a concepção integral da autonomia universitária, entendida como autonomia didático-cientifica, administrativa e de gestão financeira e, ainda, determina que as universidades obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.


Assim, a norma constitucional do art. 207 é daquelas normas de eficácia plena, na consagrada classificação de José Afonso da Silva[2], ou seja, não tem seu conteúdo normativo limitado por norma de natureza infraconstitucional (como uma medida provisória ou mesmo uma lei), como no caso das normas de eficácia contida ou limitada, que precisam do complemento normativo infraconstitucional para saber o limite seu alcance. Portanto, a autonomia universitária será exercida nos termos da Constituição Federal e não nos termos da lei.


É indispensável frisar que os titulares dos direitos fundamentais protegidos pela autonomia universitária não são as universidades em si; tampouco são os seus administradores, docentes, servidores e empregados, públicos ou privados. Incompleta, se não incorreta, inclusive a noção de que os seus titulares são, única e talvez até principalmente, os estudantes dessas instituições.


Tem-se, no Brasil, o mau hábito de ver a universidade como um local apenas de ensino quando, até por força constitucional, estão alicerçadas nos pilares do ensino, pesquisa e extensão. Desde a sua concepção e várias vezes ao longo da história, as universidades foram centros de produção, custódia e disseminação do conhecimento humano.[3] Portanto, essa busca pelo conhecimento deve ser livre, e não dirigida pela ideologia da vez; não haverá verdadeira ciência onde a política subjugar o questionamento e a ciência.[4]


Importa lembrar que no direito constitucional, sobretudo naquele de matriz sul-americana e garantista, fruto de uma luta de transição entre ditaduras e democracias, aparecem novas funções constitucionais destinadas a determinadas instituições de Estado. Essas instituições ganham protagonismo normativo constitucional, com o objetivo de serem garantias de direitos fundamentais, reconquistados nas novas democracias constitucionais. Essas instituições ganham proteção constitucional, inclusive, em relação aos poderes públicos (executivo, legislativo, judiciário), justamente para que seja possível atribuir a elas a concretude dos direitos fundamentais, independentemente das políticas governamentais, dando-lhes autonomia.


Autonomia em direito significa um poder derivado, atribuído por um ente soberano a um outro ente não soberano, mas autônomo. Portanto, foi o poder constituinte ordinário e soberano quem estabeleceu a plena autonomia às universidades, repita-se, públicas e privadas, para que elas pudessem levar adiante um projeto de Estado garantidor dos direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, em especial aqui o direito a educação, ao saber, à produção e disseminação do conhecimento científico, etc. A autonomia foi dada, principalmente, para que, em momentos de emergência, a democracia constitucional tivesse uma resposta legítima e adequada para crise, independentemente da política governamental de ocasião.


Portanto, a autonomia plena universitária do art. 207 da CF é, justamente, para limitar a máxima autoritária de que para “situações emergências, respostas jurídicas emergenciais”. Isso porque a proposta de uma democracia constitucional é ter, na emergência, uma resposta constitucional adequada, única forma de evitar os poderes autoritários e selvagens de alguns governantes que, por vezes em conduta verdadeiramente predatória, veem em momentos de crise uma oportunidade para justificarem um aumento nas suas fatias de poder ao revés da democracia (que é, por definição, a não-acumulação do poder).

Assim, a tentativa de usar a emergência internacional da pandemia da COVID-19 para “passar a boiada”[5], metáfora perfeita para romper com a Constituição, com os direitos fundamentais e com as instituições de garantia, merece plena atenção na leitura dos motivos determinantes da edição da MP 979, de 10 de junho de 2020, que cria a figura do interventor pro tempore nas universidade federais e proíbe a consulta à comunidade, escolar ou acadêmica, ou a formação de lista tríplice para a escolha de dirigentes das instituições federais de ensino durante o período da emergência de saúde pública,  e afronta os artigos 206 e 207 da Constituição, que são os dispositivos constitucionais de salvaguarda das Universidades em relação à emergência e ao discurso político de ocasião, para dar a elas o importante e fundamental papel constitucional de funcionarem como instituições permanentes, de Estado e de garantia dos direitos fundamentais a elas destinados.


Em boa hora o presidente do Senado, em ato político típico de respeito à organização dos poderes, à democracia e à Constituição, optou pela devolução da MP 979, persuadindo o presidente da república a revogá-la em razão da manifesta inconstitucionalidade.



—————————–

[1] Em 12/06/2020 o presidente do Senado, usando de interpretação do art. 48, inciso XI, do Regimento Interno do Senado, devolveu a MP 979, sob o argumento de que ela feria a gestão democrática e a autonomia universitária consagradas na Constituição. O ato de devolução de medidas provisórias consiste em controle político de constitucionalidade, cuja eficácia imediata sobre a perda de validade da MP ainda é controvertida. Desde a promulgação da CF 88, essa é a 4ª vez que a devolução de MP ocorre por parte do Congresso. Também em 12/06/2020 o presidente da república editou a MP 981, revogando a MP 979, acatando o ato de devolução do presidente do senado. A MP 979 é a segunda tentativa, através do uso das medidas provisórias, do presidente de intervenção na autonomia universitária. A primeira se deu com a edição da MP 914 de 2019, que também dispunha sobre a escolha dos dirigentes das Universidades Federais, cuja eficácia expirou em 01/06/2020, conforme se vê da consulta de sua tramitação https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/140379

[2] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: RT, 1969 e FERRAZ, Ana Candida Cunha. Autonomia Universitária na Constituição de 05.10.1988. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 215: 117-142, jan/mar. 1999.

[3] É importante ressaltar a produção científica brasileira, especialmente no que diz respeito às ciências exatas, médicas e biológicas. No já conhecido relatório produzido pela Clarivate Analytics a pedido da CAPES, 2018, disponível em https://www.capes.gov.br/images/stories/download/diversos/17012018-CAPES-InCitesReport-Final.pdf, acesso em 14/06/2020), o Brasil figura em décimo terceiro lugar no mundo em número de publicações. Dentre as áreas cuja produção científica brasileira tem o maior impacto no exterior, destacam-se áreas da Astronomia, Física e Astrofísica; Oncologia, Doenças Infecciosas Psiquiatria e Neurologia Clínica; Ecologia, Matemática e Psiquiatria, para citar apenas algumas (cf. p. 36 do relatório).

[4] Nos EUA, a declaração de 1915 da Associação Americana dos Professores Universitários (AAPU) foi seminal sobre o tema da liberdade acadêmica e a sua relação com o avanço da sociedade como um todo. A Associação ressaltou o papel das Universidades na promoção da pesquisa e avanço do conhecimento humano, para além das responsabilidades de proporcionar uma educação em nível geral para os estudantes e um corpo de especialistas para os mais diversos ramos. No âmago da declaração está a afirmação de que é necessário e do interesse de toda a sociedade que as conclusões das pessoas treinadas e dedicadas à busca da verdade devem ser as conclusões dessas pessoas, e não ecoas das opiniões do público leigo, ou dos indivíduos que financiam ou administram as universidades. AMERICAN ASSOCIATION OF UNIVERSITY PROFESSORS. 1915 Declaration of Principles on Academic Freedom and Tenure, p. 296. Disponível em: https://www.aaup.org/NR/rdonlyres/A6520A9D-0A9A-47B3-B550C006B5B224E7/0/1915Declaration.pdf. Acesso em: 20 de abril de 2020.

[5] A expressão “passar a boiada” é uma referência metafórica a fala do Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, divulgada por força de decisão do relator do inquérito n. 4831, perante o STF, onde o ministro do meio ambiente sugere o uso da pandemia e da emergência para flexibilização de normas referentes à preservação ambiental e implementar uma pauta governamental que encontra obstáculos normativos.



CAROLINA CYRILLO – professora de direito constitucional e administrativo da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadora do núcleo interamericano de direitos humanos NIDH/UFRJ, docente de elementos de direito constitucional da Universidade de Buenos Aires – UBA. Mestre em Direito pela UFSC. Advogada

LUIZ FERNANDO CASTILHOS SILVEIRA – Professor da Universidade de Caxias do Sul - UCS, coordenador da Especialização em Direito Civil e Processo Civil do Campus da Região das Hortênsias UCS. Mestre em Direito pela UNISINOS. Advogado

 
 
 

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